
Cecília Lima
Projeto Hospitalidade/Casa Aberta
A provisória escala do chão
A insegurança e instabilidade são movimentos prováveis dos trabalhos a serem desenvolvidos na Residência Hospitalidade. As escalas não são fixas, sempre elásticas, e as linguagens surgem conforme contatos-colisões do meu corpo com o corpo da cidade.
Em muitos pontos se trata do precário, de estruturas provisórias que encontro nas ruas da cidade, nos edifícios com suas paredes, em minhas caminhadas. Experiência sensível. Descoberta do mundo. Recolher os tesouros das caçambas de lixo. Perceber desenhos no chão. Rastos de um corpo em constante ebulição, metamorfose. Construir/desfazer imagens. Proposições em arte enquanto lugar de constante diálogo com os arredores de mim, escuta- incomodo -conversa com quem/ aquilo que encontro seja no processo, seja no trabalho em si, seja nas percepções e considerações que o outro partilha comigo em retorno. Me interessa estabelecer contato, as vezes por proximidade e afeto, as vezes por estranhamento e hostilidade, as vezes andando quilômetros e quilômetros, as vezes rodeando o quintal da casa de Suyan em escavação todas as manhãs.
Minha ânsia por vasculhar as ruas surgiu com as caminhadas que fazia da minha casa até o centro da cidade. Cobria o percurso como que liberta para andar com os meus próprios pés, sem ser carregada por vagões de trens ou ônibus. Todos os desvios, paradas, observações, passos mais lentos ou apressados eram modos de mergulhar no corpo da cidade e medi-la pelo meu corpo.
A práxis artística pode ser campo de proposições mínimas e macroscópicas paralelamente, cada passo que dou é um exercício de mensuração de um lugar, um movimento (possível ato performático?), ato mínimo da prática da vagabundagem, uma deriva ou deambulação situacionista, a continuação de uma rota apressada entre o ponto de ônibus e o trabalho, um tropeço se não prestar atenção aos obstáculos, uma dança bem calculada com os outros transeuntes; cada passo que dou tem potência de vir a ser todas essas possibilidades e algumas outras tantas não enumeradas aqui, mas cada passo que damos é embutido de um liberdade inerente ao ato de caminhar. Para o filosofo italiano Adriano Labbucci, quem caminha:
“(...) exprime curiosidade, comprometimento, sente-se e quer sentir-se livre para se movimentar. Conhece não a docilidade, que é uma mistura
feita de atenção e de disponibilidade (...). p 80
Desse movimento-estratégia de habitar meu cotidiano e produzir experiências estéticas ou exercícios de percepção espacial; outros trabalhos surgem: coleta de cascas e troncos de arvore e cacos de vidros e pedras e telhas quebradas e pregos tortos e vergalhões e chaveiros e sapatos velhos e folhas e velas e etc e etc e etc e tudo que for possível acumular nos cantos do ateliê ou armários. Objetos e histórias do encontro ou da pura especulação sobre a origem desses objetos, são substrato da produção, realizada em movimentos sísmicos de naufrágio-colisão com a cidade. A construção de práticas pautadas na relação de afeto com a matéria e experimentação de linguagens advém de um processo de trabalho insistente diante desses lugares sempre em erupção e caóticos, aglomerados, centros urbanos.
Topografia são a fissuras do asfalto, buracos de bocas de lobo, grama, pedras, crateras expostas à espera da fundação de um prédio, tipos de cerâmicas e calçamentos, pedras portuguesas, as planícies de Brasília, os fiordes da Islândia ou os vulcões dos Andes. Meu corpo é uma máquina de escavação dessas diferentes alturas do chão, procura tátil ou pelo olhar, sonda que detecta processos de erosão, oxidação, micro fissuras onde apenas cabem formigas, obras que reviram as entranhas urbanas com fome voraz de progresso. Esse modus operandi, quase selvagem, quase absurdo, quase indisciplinado é a origem da coleta de materiais e experiências levadas ao ateliê.
Dado esse caráter selvático do não saber o que encontrar e não saber se as previsões das chuvas ou a execução de uma performance será realizada do modo que orquestrei em cadernos e anotações, a insegurança e a transitoriedade são modos de processar a elaboração dos trabalhos em diferentes mídias. As linguagens acompanham as demandas materiais e conceituais dos trabalhos assim como as escalas elásticas mutáveis a cada proposta.