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Sofia Ramos

Projeto Hospitalidade/Casa Aberta

 

Hospitalidade hospedar receber cuidar cuidado acolher trazer pra dentro aconchegar estar junto estar perto feminino amabilidade doçura abrigo abrigar agasalhar chamar pra dentro chegar junto trazer pra perto sentir o cheiro encontrar trocar tocar é onde se mora onde se trabalha é a casa que se coloca corpo adentro.

Por entre andanças, busco no caminhar, como Michel de Certeau, a falta de lugar ou estar em busca do que ainda não se sabe. É se alastrar, é êxodo, é percorrer, migrar, peregrinar, cruzar, navegar, aproximar-se, velejar. Caminhar é estado de vigília, é estar com corpo aberto às trocas, ao encontro de tudo que pega o olhar pela beira do sensível, tudo que faz cócegas em percepção que andarilha pela rua. Caminho em Olhos d'Água então com o olhar daquele que não sabe, daquele que tateia o solo pela primeira vez com a pressão trocada dos pés, e, apesar da muita vivência em cidade de interior, daquele que se coloca para conhecer as gentes e o lugar das gentes, as casas.

Busco, então, nesse lugar do perambular, conhecer os lugares que aconchegam aqueles que moram em Olhos d'Água e recebem os que de fora vem; seja a casa colorida, seja o bar da esquina, seja a loja de artesanato. Com uma plaquinha presa ao pescoço: “faço pintura de casas”, ando pelas ruas da cidade, carregando atado aos meus ombros um cavalete montável, algumas telas pequenas e uma sacola com uns tubos de tinta e pincel. A plaquinha é mais pra criar risada de qualquer interpretação errada que ela por si só já puxa e tirar conversa solta na rua, entendendo-a como lugar de trocas que convida a proximidade, mas também não vejo problema em fazer uma cópia da pintura em papel canson para quem quiser um registro.

Paulo Nazareth tem um trabalho com placas penduradas sobre o peito. Denunciam algo sobre o sujeito se fala: corpo preto, corpo frágil, corpo com direito a algo, corpo exótico, corpo à venda. Coloca o corpo latino, escancara ele em lugares que ele já habita e não deveria habitar ou lugares aos quais ele deveria habitar e não habita. Paulo anda com essas nomenclaturas buscando encontros com aqueles que cruzam caminho, buscando criar críticas irônicas acerca da posição que ocupamos como corpos latines. São códigos, mensagens, conversas; é gente se amontoando para saber o que tá acontecendo, pra ler a mensagem que ele carrega no peito, é jeito novo de criar encontro conversa crítica. Ana Teixeira troca sonhos e ouve histórias de amor; usa das placas para buscar lugares de afeto dentro daqueles que passam pelos locais que ela coloca seu corpo ouvinte, amoroso e convidativo de encontro. Segundo a artista, seu ponto é colocar em contato o que faz com aquele que vê, mudando as relações estabelecidas entre artista e público.

As casas são como espécies de cartografias do lugar, é como entender a terra que se pisa de uma maneira única de entendimento (pela pintura); hoje toda cidade grande é gentrificada, então pra mim é bonito chegar em cidade de interior e ver as casas que completam esse lugar. Os prédios cinzas dão lugar as janelas baixas na altura do olhar, com cortinas que tapam o que se passa por dentro, portas coloridas com maçanetas diferentes, cores, portões ou cercas, flores ou plantas no jardim da frente, as vezes gente conversando na porta, ou até dentro de casa quando o barulho escapa às paredes.

As cartografias são reflexo das vivências coletivas e individuais que a cercam e formam as cidades; das necessidades, interesses, desejos daqueles grupos que trocam entre si; portanto, as casas em estilo colonial de Olhos d’Água, contam histórias de um país colonizado e o que se reflete do passado ainda hoje. A casa brasileira colonial: vem do uso da mão negra violentada, escrava, da precariedade dos meios construtivos e da submissão à cultura portuguesa.

Uso na pintura de casas de características visuais da cultura popular, que, não por coincidência, na história da arte muitas vezes foram e ainda são utilizadas na representação de cidades, populações e culturas do interior do Brasil. Trazendo então as cores vivas das pinturas indo de encontro com a própria fachada das casas, que levanta muitos comentários entre os visitantes pela variedade de cores e estilos. Proponho então a feitura de quadros com tamanhos intimistas, menores, retratando essas casas que compõem a fachada da cidade.

Além disso, proponho à hospitalidade as ações "por de cima da linha de tordesilhas” que também pensa a cidade a partir de pesquisas e andanças, compartilhando de uma visão crítica, com a ação de pintura das casas, acerca do passado histórico que marca Olhos D’água. O meridiano de 48o35’25” da linha imaginária de Tordesilhas corta a cidade, passando em frente à Paróquia de Santo Antônio. O Tratado de Tordesilhas foi feito entre Portugal e Espanha para separação das terras recém descobertas nos anos de 1500; essa linha determina não só uma submissão do território que hoje é o Brasil aos países que haviam acabado de chegar e já se sentiam no direito de tomar para si a posse daquele local, mas também dos próprios povos e culturas não-brancas que lá viviam. É dominação, silenciamento, apagamento, divisão, fronteira, afastamento. De outro lado, por serem países católicos que legitimaram muitos de seus atos violentos colonialistas em motivações religiosas, e o meridiano estar localizado em uma praça que se coloca uma Paróquia, também guarda muitos paradoxos entre o que se vê do passado e a atuação religiosa brutal que habita no Brasil hoje em dia.

 

Então, a primeira ação é "sambar na cara das inimigas". A ação propõe cair com corpo no samba; a dança traz o paradoxo entre o sensual, profano, com esse local que tenta se colocar como lugar de santidade vindo com a presença da Paróquia e da própria linha, apontando a ironia existente nas ações de violência que eram ocultadas por justificativas do bem cristão. A dança traz o divertimento, a pulsação de energia, a música, o ritmo, o samba; estilo musical que parte de encontros com a cultura de percussão vinda forçosamente com o tráfico negreiro ao Brasil, reflexo do passado num agora. O meme “sambar na cara da inimigas” é puxado como título da ação não só pela força da ironia mas também pelo próprio sentido da frase: sambar é quando uma pessoa está podendo, está fazendo algo incrível, está pisando nas inimigas. Ao pisar no tratado de tordesilhas, digo: isso aqui não nos serve, nem nunca nos serviu.

A segunda ação é "vou ensaiar a linha de tordesilhas" que trata-se de, com uma pá, cavar a linha que seria o tratado, colocar a matéria extraída dentro de saco preto de lixo, amarrar e jogar na caçamba. A ação enfatiza mais uma vez a retirada de uma linha imaginária pela matéria física da terra com a grama, que, não servinte, é enfiada em saco de lixo e jogada em caçamba. Ambas tratam-se, então, de ações que convidam a metáfora pra dentro.

Curadoria Suyan de Mattos  Hospitalidade/Casa Aberta

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